Entre o tempo e o acaso
De quando em
quando ela relia o seu “caderno de recordações”, deixadas pelos amigos na
adolescência “... para que mais tarde, ao folheá-lo, lembre-se com carinho...”
Porém, faltava-lhe uma folha, a primeira. Ela a arrancara num ímpeto de
desencanto e, pelas mãos de um amigo comum, a enviara junto de outras
lembrancinhas, dentro de uma caixinha azul embalada como para presente, àquele
que nela havia deixado a sua “recordação” e que, então, encontrava-se numa
cidade distante, para onde fora buscar a realização de um sonho, mas, lá,
diante de novas e melhores perspectivas, o transmutara... e lá permanecera. E
ela parara de devanear, desviando o curso do rio de sua vida. Depois disso
vira-o muito raramente, por acaso e à distância, quando em visita aos parentes,
ele vinha à sua cidade. Todavia, no “caderno”...
Ao contrário
do que pensara, a ausência daquela “recordação” mais a fazia recordar... Inquietava-a
mais e mais, a cada vez que o folheava. Intrigava-a. Se, pelo menos, ela se lembrasse do que ele teria escrito... Sempre tivera ótima
memória, como fora esquecer? Aquela folha existiria ainda, quem sabe largada no fundo de uma
gaveta, num velho armário... Haveria possibilidade, mesmo que miraculosa, de
recuperá-la e reler... e saber... ? Ah, parca esperança! Parca, mas esperança.
O tempo avançava...
Naquela tarde, a dor trespassava o coração de uma casa em luto, bem perto de
onde morava, e ela fora prestar sua solidariedade. Sobre uma caixa de fotos, as
lagrimas de uma mulher se derramavam inconsoláveis, dividindo com ela as imagens
de suas lembranças, e uma criança pequenina foi até o armário, pegou outra
caixa de fotos e a entregou em suas mãos. “Veja esta caixa, você.” Mas, ao
colocar a mão dentro da caixa para pegar um maço de fotos, seus dedos pinçaram
uma folha dobrada, em meio a elas. De pronto e trêmula, ela reconhecera aquelas
bordas em linhas vermelhas que ela mesma traçara em cada página do seu “caderno”,
havia mais de três décadas. Isto é meu! Exclamou eufórica, esquecida da
razão por qual se encontrava ali naquela hora, para espanto da dona da casa, que por alguns minutos “suspendera” suas dores. Como, seu!? Dentro da minha
caixa... Não pode ser seu! E o que é isso, que eu nunca vi?
Mas, era dela,
sim! Aquela folha! Aquela “recordação”! Como fora parar dentro daquela caixa de
fotos, depois de enviada para longe e há tanto tempo, vagas suposições... Mas,
era fato que aquelas fotos vieram de uma outra casa, dali mesmo, de sua cidade,
onde, num dia de grande faxina, uma caixa de guardados fora encontrada dentro
de um velho armário. Um tanto disforme, cheirando a mofo e, sem mais razão de
ser mantida, como pensara quem a encontrou, fora lançada ao fogo com tudo o que
continha. Dela, nada restara. Aquela folha, provavelmente, estaria dentro dela
e, se escapou do fogo, fora obra do acaso. Explicação que lhe deram. Obra do acaso também, a folha passar desapercebida a outros olhos, sabe-se lá por quanto tempo, e ser encontrada por
ela, dentro daquela caixa de fotos, onde por acaso foi parar e que, casualmente, a
criança entregara em suas mãos.
Assinada e
datada por ele, sob uma frase... um pensamento poético dele, aquela folha continha
a transcrição de uma poesia de J.G. de Araújo Jorge. Casualidades ou não, fato
concreto é que por mais de trinta anos resguardada entre o tempo e o acaso, aquela
“recordação” retornou às mãos dela, retomando o seu lugar no “caderno” e, casualmente, tal
como diz o poeta em uns dos seus versos, quando... “....quando
o tempo branquear os teus cabelos hás de um dia mais tarde, revivê-los nas
lembranças que a vida não desfez...”.
Boa Tarde Isabel!
ResponderExcluirÉ um prazer imenso visitar seu blog e ler palavras sábias e inspiradoras.
Beijo!
Denise Pereira.