"O amor é a força mais sutil do mundo." -- Mahatma Gandhi

segunda-feira, 1 de outubro de 2012



A avezinha do beiral

          Pousava ali, às tardes, a avezinha do beiral. Ia levar seu canto, seu alento... De repente, um ruído surdo cortou sua voz. Ruíra, por fim, o velho e soturno sobrado, tanto fustigar-lhe as ondas de mil pensares em turbilhão. Não mais assombraria o poeta com suas lembranças mórbidas, cheias de nódoas e farpas. Não mais. Sob os escombros das lôbregas paredes esfacelaram-se os seus desconfortos, seus entraves. Ele, o poeta, escapara ileso. Desperto do pesadelo, abriu-se à vida como olhos de condor. O coração pedia luz. E a vida resplandecia em cores, de horizonte a horizonte, sob o infinito azul, onde o tempo é sempre alvor. Em tempo, rebuscou seus anais, reviu seus feitos, atualizou conceitos... Revisou sua história com um novo olhar. Havia muito a acrescentar, novas estradas a percorrer, metas a alcançar. 

     Cálido soprava o vento. Em correntes ascendentes espalhava na atmosfera o perfume das flores que aspirara na primavera, como a receber em festas a nova estação. Hora de retomar-se, beber da própria fonte a água revitalizante, percorrer os campos interiores... Extrair o joio, aventar as ramas... Dourar a fronte sobre os trigais dos sonhos. Colher os frutos amanhados no tempo do sonhar risonho, enxertados de poesia no coração da semente, vingada à força da Vida, aos ralos raios de sol que, clandestinamente, adentravam o velho sobrado pelas fendas das janelas cerradas.

         Agora, sem mais paredes a cercear-lhe os ideais, sem mais o ranço da névoa densa a ofuscar-lhe a vista, sem mais a trava da solidão a emperrar-lhe os passos, lá vai o velho poeta, retemperado à luz clara dos dias de verão. Coração desassombrado compartilhando a colheita, a alma fértil germinando novos versos... Enquanto a avezinha se eleva sobre os escombros e segue-o... de longe... a cantar... 

Isabel Pakes






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